terça-feira, 2 de março de 2010

QUEIMEI A LÍNGUA!!!

Já faz um tempo que visitei o blog da professora Eide e me deparei com um belíssimo texto denominado Transportes. Este evidenciava de maneira profunda o quanto de nosso espírito é deslocado, perdido e sugado diariamente pela turbulenta vida cotidiana nas cidades; além disso, as palavras da professora também revelavam o quão prejudicial é o exercício diário de alheamento realizado por nós para suportar a tumultuosa, enfurecida e caótica realidade urbana em que estamos inseridos. Nas belas palavras da professora Eide notamos que: “Resta saber se, após todos os esforços de alheamento feitos, conseguimos nos resgatar integralmente, depois de fechar a porta, ao chegar em casa. Adaptando afirmação que Simone Weil fez em relação à experiência da vida de fábrica, seria bom se pudéssemos deixar a nossa alma pendurada, antes de atravessar a porta para ir à rua, e recuperá-la de novo ao voltar. Mas, infelizmente, ela vai junto conosco.” Por mais que eu discorra sobre o texto tentando não corrompê-lo a melhor coisa é lê-lo; para isso, entrem no espaço onde ele está disponibilizado http://eideabreu.zip.net/.

Após desfrutar deste excelente texto resolvi deixar um comentário; com algumas palavras tentei trazer elementos diferenciados para a discussão já sugerida pela professora em seu texto. Estes novos elementos mostravam uma percepção particular minha sobre o exercício diário de alheamento descrito pela escritora; assim, meu comentário sugeria que além do alheamento diário realizado por nós para suportar as mazelas da vida cotidiana, também tínhamos que suspender nossos espíritos e nos esforçar para ficarmos ausentes das impositivas mensagens religiosas (evangélicas, católicas, etc.) presentes em todos os lugares. Eis o comentário que fiz:


Oi Eide, este exercício de afastamento diário que você explicita muito bem em seu texto é tão comum que muitas vezes não damos conta do quanto de nós é deslocado e sugado pela vida cotidiana, urbana e turbulenta. Não sei se estaria trazendo elementos que transcendem demasiadamente a discussão, mas o que me deixa triste é que esta perca diária de nosso espírito (que a vida ordinária nos impõe) leva determinados indivíduos a buscarem recursos para suprir este deslocamento e esta evasão de seu ser. É impressão minha ou nunca as igrejas estiveram tão lotadas? Acredito que muitos indivíduos lidam com este dilema agarrando-se em entidades suspeitas, que por vezes, se valem das mazelas humanas e da falta de auto-percepção dos indivíduos sobre sua realidade e condição para conseguir público. Bom, mas sobre esta questão, Durkheim já tinha nos oferecido uma boa explicação: “Assim que cumprimos nossos deveres rituais, retornamos à vida profana com mais coragem e ardor, não somente porque nos pusemos em contato com uma fonte superior de energia, mas também porque nossas forças se revigoravam ao viver, por alguns instantes, uma vida menos tensa, mais agradável e mais livre. Por isso, a religião tem um encanto que não é um de seus menores atrativos” (DURKHEIM, As Formas Elementares Da Vida Religiosa, 1996, p. 417) Deve ficar claro que o autor não está exaltando irracionalmente a religião, mas revelando que ela chama para si os indivíduos que na vida ordinária sofrem com suas realidades, daí o seu sucesso. Acredito, que quando não há por parte do indivíduo uma auto-percepção, o que lhe resta é o contato com alguma forma de entendimento delirante que explique sua condição, que o supere. Hoje, o problema é que além de eu realizar um exercício diário de alheamento decorrente das mazelas da vida, passo também a fazer outros que visam me afastar das centenas de igrejinhas espalhadas por toda a cidade e das dezenas de canais evangélicos, insistentes, que invadiram a TV.


Bom, deu para perceber que fico incomodado e não gosto da invasão e imposição freqüente de determinadas entidades e idéias religiosas. Pois é, faz três semanas que tive uma experiência que testou minha paciência e me fez QUEIMAR A LÍNGUA, literalmente. Estava desfrutando de minhas férias; assim, além de trabalhar em minha pesquisa, li coisas que estava com vontade, assisti coisas que havia protelado e recebi e visitei amigos que não via há tempos. Porém, em meio a realização destas adoráveis atividades tive uma notícia de minha mãe não muito empolgante e, de certa forma, assustadora. Vejam como a notificação ocorreu:

Geni: “Vai ter uma missa aqui em casa hoje, está sabendo?”

Felipe: “Não.”

Geni: “Mais vai. Se prepara, você vai fazer uma das leituras durante a cerimônia.”

Felipe: “Não vou não.”

Geni: “Vai sim, e não me dê mais este desgosto (referindo-se ao fato de eu não ter cortado o cabelo e feito a barba, ambos estavam, estão e continuarão grandes).”

Felipe: “Mais eu tenho visita hoje.”

Geni: “Cancela e vem me ajudar a arrumar a casa para receber as pessoas.”

Felipe: “Tá bom.”

Todo mês tem uma missa da comunidade e dessa vez foi em casa. Aceitei a idéia de fazer a leitura e arrumar a casa para proporcionar um agrado para minha mãe; afinal, além de amar e querer adular a genitora, se não fosse por este texto do blog, ninguém ficaria sabendo. Durante a arrumação (posicionar os assentos, arranjar as flores, limpar e impetrar o pequeno altar do padre, dispor os cartazes com passagens da bíblia, etc.) foi me aflorando um sentimento violento de contradição e submissão, nunca sentido com tal intensidade. O motivo dessa sensação eu não posso dizer exatamente qual foi; mas posso especular. Acredito que meu passado se fez presente e despertou em meu espírito uma luta com aquilo que acredito e sou hoje.

Sou de família católica e não me foi ofertada a opção de escolher dada religião; claramente o catolicismo me foi IMPOSTO. Quando criança e adolescente passei por todos os tipos de ritos, estágios e cerimônias desta religião (fiz catequese, pré-jovem, primeira comunhão, crisma, freqüentei missas, quermesses, grupos de jovens, retiros, etc.). No entanto, hoje represento quase tudo que esta instituição condena; além disso, penso bem diferente daquilo que ela informa. Afinal, sou gay, não me submeto aos paradigmas e concepções morais do catolicismo e acredito numa autonomia do indivíduo que transcende o mundo religioso (isso não significa negar a importância da religião no interior da sociedade, mas revela a necessidade de ficarmos atentos para as limitações que tal instituição proporciona ao indivíduo e sua ação).

Durante a missa aconteceram algumas coisas que despertaram em minha alma recordações do meu passado cristão. As músicas da cerimônia continuaram as mesmas e eu sabia cantá-las; as orações e os ritos penitenciais saiam da minha boca de maneira clara e bem entoada, como se eu ainda fosse à missa frequentemente; a maneira como impostava a voz e pronunciava as palavras da bíblia durante minha leitura era semelhante ao modo como os demais leitores liam (quem nunca foi a uma missa pode não entender isso, mas quem já foi compreende que as leituras não são feitas de qualquer modo, elas são bem pausadas e, por vezes, exigem dos leitores um inexplicável entretecimento, padecimento ou angústia para expor as palavras).

Além disso, teve mais um fato durante a cerimônia que não só rememorou meu passado, mas efetivamente me ligou com ele. Na hora da eucaristia, receber a hóstia (o corpo de Cristo), eu fui saindo discretamente do recinto para não participar deste momento da cerimônia; afinal, não me sentia confortável com a idéia de receber o símbolo máximo desta religião e efetivamente compartilhar com ela seus preceitos (fazia anos que não ia para uma missa). Porém, neste instante, senti um solavanco arrebatador; era meu pai. Ele pegou fortemente no meu braço e enquanto o apertava me dizia: “Você vai entrar nessa fila, agora. E vai comungar. Já.” Então fui. Sem pestanejar. Senti-me criança novamente e revivi mais uma vez um poder constrangedor, repressor e eficaz vindo do meu pai; a execução de um poder altamente coercitivo para que eu aderisse a um comportamento muito bem quisto por ele.

Ao receber a hóstia não senti nada; ao invés de esperar dissolver, como fazia antes, mastiguei, mastiguei e engoli. Só.

Depois dessa experiência retornei aos agradáveis momentos de minhas férias. Porém, não deixei de pensar nestes acontecimentos, então resolvi escrevê-los. Sinto que desta vez não foi possível ficar alheio aos pensamentos e comportamentos religiosos; afinal, eles invadiram meu espaço privado e se valeram de lembranças (bem constituídas em mim através da educação religiosa que tive) para serem rememorados e bem executados. Então fiquei pensando, quem realmente sou? Como não se perguntar isso depois de perceber que dentro de mim ainda existe pensamentos e idéias não mais acreditadas e, por vezes, negadas por mim que tão facilmente podem aflorar e se desdobrar em atos e ações? Ou, como não se perguntar isso depois de apreender que aquilo que você acredita hoje não é realmente capaz de impedir e expulsar do espírito pensamentos e idéias não mais reconhecidas como suas? ARRAZOEM sobre isso.

Espero que estas palavras sirvam de alguma coisa para seus leitores; para mim, elas servem de desabafo. Vejam o vídeo do The Killers e prestem atenção na letra, para mim, tem tudo haver com o post. Abraços, Felipe!!!


3 comentários:

  1. Amigo,agustiante desabafo. Mas, "DuDu" explica, meu caro.
    Senti algo parecido com isso nas férias tbm e noticiei lá no meu Blog.
    Bom ou mal, cheguei a conclusao que na verdade eu não nego o que fui. Na verdade transformei pouco daquilo que "somos por imposição (social)".
    Hoje tenho (e temos) mais condições de enteder o por quê disso tudo, mas será que nos transformamos mesmo. Intimamente???
    Falo por mim.
    Tenho às vezes a impressao de que nos travestimos de personagens. Que o que estudamos e os nossos pares nos cobram uma mudança. Mas, isso não é tbm IMPOSIÇÂO??? Alias, para o Durkheim, as normas, regras e valores, não estão necessariamente escritas, mas inscritas em e por determinados grupos. Ou não?
    Nos transformarmos ou não, não nos tornará mais ou menos Cientistas Sociais. Para os quais a incumbência é "levantar questoes", "desnaturalizar", etc...

    "Nada-mais-que-devaneios" ou "arrazoadas", entao lá vai uma contribuição da minha mais nova filosofa - Ro Rô

    "Viva o momento
    Passado, futuro, presente
    Forget about os valores sociais"
    (Vciado em Regras - 1988)

    Beijos!
    To de mal...saudades!!!

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  2. É amiga, será que nos transformamos?
    Fico pensando nisso e percebo que há mais camuflagem e negação do que propriamente mudança e transformação. E isso é problemático, pois acaba levando à uma falta de percepção precisa daquilo que somos, acreditamos e queremos.
    Obrigado pelas palavras, Dino!!!

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  3. Exatamente, amigo...
    É isso que quis dizer ao afirmar que "nos travestimos de personagens".

    Mas, lá no fundo acho que sabemos o que somos e queremos...
    Ou não...a pedras aparecem e precisamos contona-las para continuar no caminho!!!]

    Vish nada a ver...mas ARRAZOADAS infindaveis...

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